Permita que eu fale
- Marcela Silva
- 8 de out. de 2024
- 3 min de leitura
Permita que fale, a princípio pelas minhas raízes. Se narro sobre a minha vivência não posso roubar aquilo de onde eu vim.
A sensibilidade habita em minha pele ainda antes de concebida. Quem não me conhece de imediato percebe, quem me conhece tem certeza com firma reconhecida. A curiosidade desbravou pelo interstício na segunda-feira chuvosa quando, entediada, decidi rebentar a bolsa que há nove meses me protegia. A introspecção não sei de onde vem, mas a transpiro pelos poros. O apreço pelo cuidar veio do afeto que recebi quando fui cuidada. Por isso me relaciono com gentileza e inteira, costumo ponderar os contextos e isso me facilita compreender melhor as coisas e as pessoas. Isso me ajudou a ser bem quista nos lugares por onde transitei.
Sempre passei por média, ainda que os números me conturbem até hoje. Acima da média também estive pelos privilégios herdados para conviver em uma sociedade eurocêntrica, fadada a normatização. Branca, classe média, com acesso a saúde e educação de qualidade, cisgênero e heterosexual. Tenho consciência que isso me colocou no pelotão dianteiro na largada desta maratona terrena, apesar da misoginia se dedicar a me oprimir.
Em contrapartida, a coragem me faltava. Esta tatuei a todo custo em decorrência das vivências abusivas, dos dissabores, dos disparates, dos desejos inegociáveis com a realidade que me cerca. Lesada, adquiri cicatrizes de todos os tons, diversas e difusas. Superficiais e profundas. Rupturas cutâneas que nos dilaceram até sangrar os desencantamentos, na mesma medida que se sobrepõem novos tecidos que remodelam nossas experiências. Adaptar-se é a essência da sobrevivência e tal habilidade preciso lapidar ainda hoje.
Permita que eu fale, inclusive minhas cicatrizes. Não posso pô-las enquanto coadjuvantes, figurantes, pois elas se manifestam ainda que tente amordaçá-las. Ainda que eu não as escute. Na minha história não se protagoniza nem isso nem aquilo. É narrada por sujeitos próprios que dramatizam as nuances daquilo que me constitui em camadas emaranhadas e dinâmicas.
Um tanto por isso, mantenho postura de abertura ao que me atravessa, da mesma forma que desvio daquilo que me entrecorta. Mantenho os olhos voltados às possibilidades quando o que se apresenta não se alinha ao que esperava. Mantenho, contudo — não temo dizer — falho na manutenção. É neste descompasso que se revela a vulnerabilidade que me torna humana.
Vem bem disfarçada e amiúde. Transparece na gastroenterite, no descontrole daquilo que ansiava controlar. Na fala que por vezes acelera e por vezes se cala, dando um nó asfixiante na garganta. No frio na barriga sem justificativa nem hora marcada. Na busca pelo prazer imediato. Às vezes me deixa afobada; em outras, confinada. Vem camuflada na irritação com as exigências sociais desconexas e com a convivência com pessoas que julgo irresponsáveis. Pausa. Sim, psicólogos são pessoas que vivem além do setting terapêutico e, fora dele, somos tão gente como vocês. Desmistifiquem-nos.
Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes. Não me resumo a elas e jamais autorizaria que os maus-estares me definissem. Não admito que roubem tudo que construí, nem tudo que ainda pretendo erguer. Minha história tem senso e contra-senso, barulho e silêncio, não porque anda em cima do muro, mas porque é intensa e se arrisca nos abismos.
Assim sendo, me revesti de resiliência para enfrentamento. Exercito o não. Me priorizo. Me escuto. Abro espaço para minha intuição. Respiro no caos e nele procuro perceber a genuína felicidade. Respeito meu tempo, meus limites. Faço juz a minha trajetória. Me atrevo. Me posiciono quando vale a pena e quando não vale, finjo demência. Sonho. Reconheço minhas responsabilidades. Admiro as sutilezas da vida.
Voltada a elas, observo o verde, sobreposto ao azul celeste, das folhas a balançar. Me tranquilizo na luz natural, na ventania que invade meu rosto, por mais que faça meu cabelo esvoaçar. Bordo livremente. Frevo sem ser em fevereiro. Descanso as costas no chão, me espreguiço e me alongo. Recorro à água quente do chuveiro e à salgada do banho de mar. Me deleito na leitura e no escurinho do cinema. Agradeço por uma boa noite de sono, sobretudo depois do maternar.
Tensionada por estas forças invisíveis, desordenadas e ilógicas, me fidelizei ao que acredito. Me dedico ao cuidar no âmbito pessoal e profissional, pois defendo a transformação da realidade por meio de relações humanas respeitosas consigo e com o outro. Cuidado este que deve iniciar a partir da parentalidade para reverberar pelos diversos vínculos sociais consequentes. Cuidado este que precisa urgentemente ser desvinculado aos vieses opressores de gênero.
Me inclino, assim, à subjetividade humana, ao acolhimento e validação das diversas formas de existir. Aos ressentimentos cíclicos, aos lutos disruptivos, às dúvidas paralisantes, às angústias que definham. À análise individual de recursos que sustentem as idiossincrasias de cada realidade psíquica. À facilitação dos processos internos para elaboração, redirecionamento e ressignificação.
Por fim permita que te escutem, livre e atentamente. O eco do discurso liberto — outrora recluso — vai te levar muito além.
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